sexta-feira, 28 de março de 2014

LITERATURA EM CAMPO - A CRÔNICA DE NELSON RODRIGUES

A Semana de Literatura se aproxima e desta vez o tema é Futebol!
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Agora  leia  três de suas mais célebres crônicas!


Complexo de vira-latas
Nelson Rodrigues
Hoje vou fazer do escrete o meu numeroso personagem da semana. Os jogadores já partiram e o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperança mais frenética. Nas esquinas, nos botecos, por toda parte, há quem esbraveje: “O Brasil não vai nem se classificar!”. E, aqui, eu pergunto:

— Não será esta atitude negativa o disfarce de um otimismo inconfesso e envergonhado?

Eis a verdade, amigos: — desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. Dizem que tudo passa, mas eu vos digo: menos a dor-de-cotovelo que nos ficou dos 2 x 1. E custa crer que um escore tão pequeno possa causar uma dor tão grande. O tempo passou em vão sobre a derrota. Dir-se-ia que foi ontem, e não há oito anos, que, aos berros, Obdulio arrancou, de nós, o título. Eu disse “arrancou” como poderia dizer: “extraiu” de nós o título como se fosse um dente.

E hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — O pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: — Se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas e 60 milhões de brasileiros iam acabar no hospício. 

Mas vejamos: — O escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: 

— Eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo. Tenho visto joga dores de outros países, inclusive os ex-fabulosos húngaros, que apanharam, aqui, do aspirante-enxertado do Flamengo. Pois bem: — não vi ninguém que se comparasse aos nossos. Fala-se num Puskas. Eu contra-argumento com um Ademir, um Didi, um Leônidas, um Jair, um Zizinho. 

A pura, a santa verdade é a seguinte: — qualquer jogador brasileiro, quando se desamarra de suas inibições e se põe em estado de graça, é algo de único em matéria de fantasia, de improvisação, de invenção. Em suma: 

— Temos dons em excesso. E só uma coisa nos atrapalha e, por vezes, invalida as nossas qualidades. Quero aludir ao que eu poderia chamar de “com plexo de vira-latas”. Estou a imaginar o espanto do leitor: — “O que vem a ser isso?” Eu explico. 
Por “complexo de vira-latas” entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol. Dizer que nós nos julgamos “os maiores” é uma cínica inverdade. Em Wembley, por que perdemos? Por que, diante do quadro inglês, louro e sardento, a equipe brasileira ganiu de humildade. Jamais foi tão evidente e, eu diria mesmo, espetacular o nosso vira-latismo. Na já citada vergonha de 50, éramos superiores aos adversários. Além disso, levávamos a vantagem do empate. Pois bem: — E perdemos da maneira mais abjeta. Por um motivo muito simples: — porque Obdulio nos tratou a pontapés, como se vira-latas fôssemos. 

Eu vos digo: — O problema do escrete não é mais de futebol, nem de técnica, nem de tática. Absolutamente. É um problema de fé em si mesmo.

O brasileiro precisa se convencer de que não é um vira-latas e que tem futebol para dar e vender, lá na Suécia. Uma vez que ele se convença disso, ponham-no para correr em campo e ele precisará de dez para segurar, como o chinês da anedota.
Insisto: — Para o escrete, ser ou não ser vira-latas, eis a questão.
Vocabulário:
Escrete: time escalado para competição, seleção.


Texto extraído do livro “As cem melhores crônicas brasileiras”, editora Objetiva, Rio de Janeiro (RJ), p 118/119, e do  livro “À sombra das chuteiras imortais: crônicas de chutava”, seleção de notas de Ruy Castro – Companhia das Letras – 1993.


ABAIXO A HUMILDADE

Nelson Rodrigues

      
   Eu sempre me lembro daquele personagem de Dickens que vivia clamando pelas esquinas: _ “Eu sou humilde! Eu sou muito humilde! Eu sou o sujeito mais humilde do mundo!”. Era demais, como se vê. Mas, essa humildade espetacular e, por vezes, agressiva, já intimidava e acuava vizinhos, parentes, conhecidos e até desconhecidos. Quando ele passava na rua, havia, de imediato, o cochicho invejoso e consagrador: _”Lá vai o humilde!”. E o fulano não parava em casa, vivia saindo, para melhor passear e melhor exibir a sua insolente humildade.
   Pois bem: _ O brasileiro tem um pouco de personagem de Dickens. Eu disse “um pouco” e já amplio: _ Tem muito. Se examinarmos nossa história individual e coletiva, esbarraremos, a cada passo, com exemplos inequívocos e indeléveis de humildade. Por exemplo: a recentíssima jornada do escrete brasileiro em canchas europeias. Foi algo de patético. No dia mesmo do embarque, vem o nosso técnico Flávio Costa e, a babar de humildade, anuncia: _”Nós vamos aprender!”. Vejam vocês: aprender! Vinte e quatro horas depois, a declaração soava e ressoava no berro impresso das manchetes. Quem dizia isso não era um qualquer, mas alguém investido da autoridade e da clarividência de técnico do time.
   Quem leu ou escutou a advertência teve todo o direito de pensar que o escrete era analfabeto em futebol. De qualquer maneira, não se podia desejar uma humildade mais compacta e mais refalsada. Um retrospecto de nossos resultados internacionais teria, talvez, justificado uma manifestação ereta e viril e não esse esgar de subserviência. Afinal, éramos, na pior das hipóteses, os vice-campeões do mundo. E fizermos, na Copa da Suíça, um jogo pau-a-pau com os divinos húngaros.
    E, assim, imersos até o pescoço numa vil modéstia, lá partiram os nossos craques para aprender na Europa. Mas já não constituíram uma equipe briosa, entusiasta, segura de si mesma e dos próprios méritos. Com um piparote o Sr. Flávio Costa dizimara toda a euforia, devastara todo o élan dos nossos rapazes. Ao sair daqui, o escrete está amadurecido para a derrota. O raciocínio é claro: se íamos aprender, nada mais natural que os mestres europeus nos infligissem pesadas derrotas.
    Eis a verdade: a primeira derrota da representação, o primeiro empate, o primeiro fracasso foi quando se disse, aqui, que “íamos aprender”. Essa humildade real e não simulada é que nos desfibrou em Lisboa, na Suíça, em Praga, em Milão, em Londres. Como  explicar o colapso em Wembley? Foi a humildade, sempre a humildade. Dias antes, com efeito, o Sr. Sílvio Pacheco concedera entrevista em Londres. Perguntado se o escrete brasileiro tinha alguma possibilidade no Mundial de 58, respondeu com pomposa e hedionda certeza: _”Nenhuma!”. Em suma, o presidente da CBD desfraldou a humildade nacional com o impudor de uma manchete. Com dois anos de antecipação, ele derrotou a equipe nacional. Como explicar essa instintiva, essa incontrolável tendência para a autonegação? Será o servilismo colonial que acometeu também o futebol?
   Ou expulsamos de nós a alma da derrota ou nem vale a pena competir mais. Com uma humildade assim abjeta, ninguém consegue nem atravessar a rua, sob pena de ser atropelado por uma carrocinha de Chica-bom.

(Manchete Esportiva, 19/5/1956)

Contexto da crônica: Brasil 0x0 Tcheco-Eslováquia, 21/4/1956, em Praga. Brasil 0x3 Itália, 25/4/1956, em Milão. Brasil 1x0 Turquia, 1/5/1956, em Istambul. Brasil 2x4 Inglaterra, 9/5/1956, em Londres. Demais amistosos do escrete naquela excursão.

Vocabulário:
Cancha: campo.
Escrete: time escalado para competição, seleção.



A realeza de Pelé
Nelson Rodrigues
Depois do jogo América x Santos, seria uma crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem   pender mantos invisíveis. Em suma: — Ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíca, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

Nota extratexto:
Este tipo de leitura serve muito mais aos incrédulos que insistem em comparar o Rei Pelé aos simples mortais que desfilam pelos campos de futebol nos dias de hoje e também aos que insistem em não reverenciar o maior atleta de todos os tempos, porque o brasileiro tem esta mania de não valorizar o seus ídolos verdadeiros ,talvez por que os egos regionais e as bandeiras de clubes sejam diferentes ,porém Pelé esta acima das vaidades e das bandeiras ,sua indesmentível trajetória permite a cada um de nós revervar uma ponta de orgulho em nossos corações por sermos brasileiros tal e qual o Rei.



Vocabulário:
Escrete: time escalado para competição, seleção.

RODRIGUES, Nelson.  A pátria em chuteiras – novas crônicas de futebol,
 SP: Companhia das Letras, 1994.

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